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31 de mar. de 2011

Um momento

A ti, que de curiosa, passaste a conhecida, de conhecida para interessada, de interessada para companheira, de companheira para amiga, meu mais sincero Nekhtet neste novo dia, teu zepi tepi, que se inicia. 

A ti congratulo e saúdo, saída do templo e banhada pelo alento do sol. Tu, que carregas o sol da manhã no teu nome e tem dentro de ti segredo, magia e uma força vermelha. Hoje não dou as mãos para te ajudar, mas para que caminhes ao meu lado em nossa terra de areias. 

Ainda ontem recebemos visitas em nosso lugar sagrado, e muito me fez feliz estar lá e ver que ela, a nossa sacerdotisa também desfrutou da alegria das visitas. Sim, elas eram alegres, curiosas e também tímidas. Suas vestes e os sussurros, os olhares e os sorrisos, nada deixou de ser notado. Em certos momentos a tarefa foi árdua, pois não era eu somente aquela que redesenhava palavras, mas também a que zelava e participava da tua cerimônia.

Haviam tantos dos nossos! E foi com orgulho que te vi ir à frente, nervosa, mas em frente. Recebeste teu presente e teus olhos estavam repletos de lágrimas e felicidade. Gratidão e amor eu vi neles, e como teu Pai, que também é meu, brilhaste.

Juramentos e promessas proferidos, ainda atônita estavas quando todos começamos a celebrar. E então eu fui comemorar também após cumprir meu dever. Não pude dar atenção a um dos nossos, pois este, tal qual seu pai, veio e partiu silencioso. Tudo muda de novo e quando tentei brindar a ti, fui chamada ao dever por outro dos nossos. 

Não estavas só, as convidadas te faziam companhia, e assim parti por um breve instante. Por fim, cheguei a tua celebração, te saudei e brindei. A mim vieste com palavras de gratidão e carinho, que meu coração e alma bem receberam. De meu Pai, aquele que não é o teu mas tens grande apreço, recebi cumprimentos que te mandei.

Conversamos e celebramos e o tempo se acelerou. Era hora de todos irmos, mas com a promessa de nos reunirmos em outras comemorações. Parti para minha morada, rumo a meu descanso, cansada e feliz.

Tua jornada certamente não chegou ao fim, mas agora deixo eu de ser tua "tia" para com orgulho te dar aos mãos e te chamar de irmã. Bem-vinda à família. 

26 de mar. de 2011

30 dias de paganismo - Dia 03: Ortodoxia x gnose pessoal

           Logo de cara, uma das primeiras palavras a ressaltar aos olhos é o “Ortodoxo” quando lemos Ortodoxia Kemética. Então, o que isso quer dizer, que sigo por aí, de cabeça raspada como uma sacerdotisa dos afrescos e já estou eu, Tanakht, construindo minha tumba para quando eu morrer?
            Calma que não é bem assim. Primeiro que eu curto o meu cabelo onde e do jeito que ele está, então a parte de raspar a cabeça fica para outra ocasião. Quanto à tumba, primeiro penso em construir outras coisas primeiro, a tumba, quem sabe depois, ok?
            Quando eu falo em ortodoxia, me refiro à parte em que nós, keméticos, procuramos seguir aquilo que define uma religião como reconstrucionista: tentar chegar o mais perto do possível do que os antigos faziam, mas de acordo com o nosso tempo. Por exemplo, eu não acendo uma vela com sílex, eu uso fósforo mesmo. Isso é ser racional, e não um fanático. A questão toda que pega, e que muita gente não compreende é esta: é preciso disciplina sim, mas com bom senso, sem tolher a expressão de cada pessoa.
            Da mesma forma, não é aceitável flertar com o samba do crioulo doido. Exemplifico:
Se está dito que a pessoa tem que ter um altar, ela tem que ter um altar.Arranje espaço! Não tem um cômodo separado, faz no seu quarto; não pode ser visto, bota numa gaveta ou numa caixa e na hora que for usar, acende a vela do lado de fora. Ninguém precisa construir algo como Abu Simbel se não pode. Faça o que pode, mas faça o seu altar.
            Sem samba do crioulo doido: nada de não fazer altar porque “não sentiu necessidade”, “porque honra os deuses no astral”. “porque distribuir pela casa fica mais bonito”. Ortodoxia: os antigos tinham templos incríveis que nos maravilham até hoje, e mesmo os mais humildes tinham altares em suas casas. Então, sem choro nem vela. Disse e repito: não é um caminho para todos.
            E onde entra então, a gnose pessoal nisso tudo? Keméticos são nerds robôs?
        Bom, talvez alguns de nós sejam nerds, ainda não fiquei sabendo que tenham robôs keméticos...Mas na maioria, exercitamos nosso direito sagrado de nos expressarmos. Sei de pessoas que honram seus deuses dançando, outras dedicam seus estudos universitários; alguns escrevem hinos, outros pintam. Outros apenas contemplam a natureza e assim se conectam. Outros, como eu, falam sobre suas crenças.
            Alguns keméticos usam velas pequenas, outros das de 7 dias, outros usam lamparinas. Alguns chamam seus Pais por apelidos, outros usam os nomes completos com os epítetos. Sei de pessoas que compram presentes para ofertar a seus deuses, como bichos de pelúcia, jóias, brinquedos.Alguns cobrem seus altares de seda pintada a mão, outros usam toalhas de mesa.
      Eu poderia ficar aqui escrevendo até meus dedos e olhos caírem. A diversidade é fascinante e uma celebração que muito me agrada. Gnose pessoal na ortodoxia é isso, o toque de diversidade na unicidade que permite que ela não destoe, ainda que seja diferente. Todos pilares estão lá, firmes e uniformes, mas multicoloridos.

P.S.: Um dua especial ao meu Pai Set, em seu dia, e que foi minha inspiração para esse texto. Dua Set!

20 de mar. de 2011

30 dias de paganismo - Dia 02:Divindades

    Sou reconstrucionista, logo, não criei um panteão ou uma mescla de panteões. O panteão egípcio é o que sigo, e este é composto por vários deuses e deusas.
    Os deuses/as egípcios tem características diversas, mas geralmente encontramos suas descrições e imagens de maneira zoomórfica, ou seja, com partes de animais.Por exemplo:


Sobek é um homem com cabeça de crocodilo.









                    

                     Renenutet é uma mulher com corpo/cabeça de serpente. 

    Correlacionamos também os deuses aos animais presentes em suas representações. Assim, o mesmo Sobek pode aparecer representado como um crocodilo ou Renenutet como uma serpente.O culto aos animais sempre esteve presente no Egito, com os falcões e besouros sendo os primeiros animais a serem considerados sagrados.
    Os deuses tem conexão com a natureza como um todo e seus fenômenos. Por esse motivo, considera-se que a religião seja panteísta - os deuses estão em tudo. Os deuses também possuem ligações com o céu em seus diferentes momentos através do dia e da noite, como Wadjet que é identificada com "a aparência do céu ao norte onde o sol nasce". Também possuem ligações com a terra, no caso, o Egito em termos de geografia. 
   Neste ponto, a concepção dos deuses assemelha-se ao helenismo e seu conceito de religião de pólis, onde vemos deuses/as sendo venerados e sagrados em determinados lugares em detrimento de outros. Thebas, a cidade de Bast e Mut; Abydos, cidade de Wesir.
    Entretanto, apesar do que possa parecer, o Kemetismo Ortodoxo não é uma religião de politeísmo, mas de monolatria. Atenção: monolatria é diferente de monoteismo, como no caso das religiões abraãmicas. No monoteísmo, há somente um deus, na monolatria, não. 
    Da mesma forma, também não somos henoteístas, onde afirmamos que o deus X é superior ao deus Y ou que determinado deus/a está acima dos outros deuses/as e que o culto de uma pessoa deve ser direcionado desta maneira. Como exemplo, cito o Odinismo dentro do Asatrú, que possui essa visão henoteísta.
     No Kemetismo Ortodoxo cremos em um princípio, Netjer. Netjer, ultra master do universo, não é feminino ou masculino. Então, aqui não cabe o conceito da Deusa Wicca ou de Javé, que é assumidamente, "Pai/Senhor".Netjer é tudo, o divino e sagrado. 
    Netjer apresenta-se com vários Nomes, Netjeru (deuses) e Netjeret (deusas) no panteão egípcio. São estes Nomes de Netjer os que personificam cada um dos seus aspectos separadamente. Assim, podemos interagir de uma maneira mais única e intensa, vivenciar e conhecer melhor o todo através de suas partes.
    Todos e um:Netjer.

12 de mar. de 2011

Você tem o relógio, eu tenho o tempo.

Este é um texto maravilhoso, link enviado pela Iony. Obrigada!
Espero que todos aproveitem a leitura como eu aproveitei.




" - Não conheço minha idade: nasci no deserto do Saara, sem endereço nem documentos…! Nasci num acampamento nômade tuareg entre Timbuctú e Gao, ao norte do Mali. Fui pastor dos camelos, cabras, cordeiros e vacas que pertenciam a meu pai. Hoje, estudo Administração na Universidade de Montpellier, no sul da França. Estou solteiro. Defendo os pastores tuaregs. Sou muçulmano, mas sem fanatismo. 
- Que turbante bonito! 
- É apenas um tecido fino de algodão: permite cobrir o rosto no deserto quando a areia se levanta e, ao mesmo tempo, você pode continuar vendo e respirando através dele. 
- Sua cor azul é belíssima… 
- Ela é a razão pela qual chamam a nós, tuaregs, de homens-azuis: o tecido aos poucos desbota e tinge nossa pele com tons azulados. 

- Como vocês produzem esse intenso azul anil? 
- Com uma planta chamada índigo, misturada a outros pigmentos naturais. O azul, para os tuaregs, é a cor do mundo. 
- Por que? 
- É a cor dominante: a do céu, a do teto da nossa casa. 
- Quem são os tuaregs? 
- Tuareg significa “abandonado”, porque somos um velho povo nômade do deserto, um povo orgulhoso: “Senhores do Deserto”, nos chamam. Nossa etnia é a amazigh (berbere), e nosso alfabeto, o tifinagh. 
- Quantos vocês são? 
- Cerca de três milhões, a maioria ainda nômades. Mas a população diminui… “É preciso que um povo desapareça para que percebamos que ele existia!” denunciou certa vez um sábio: eu luto para preservar o meu povo. 
- A que ele se dedica? 
- Ao pastoreio de rebanhos de camelos, cabras, cordeiros, vacas e asnos, num reino feito de infinito e de silêncio. 
- O deserto é mesmo tão silencioso? 
- Quando se está sozinho naquele silêncio, ouve-se as batidas do próprio coração. Não existe melhor lugar para quem deseja encontrar a si mesmo. 
- Que recordações da sua infância no deserto você conserva com maior nitidez? 
- Acordo com o sol. Perto de mim estão as cabras de meu pai. Elas nos dão leite e carne, nós as conduzimos onde existe água e grama… Assim fez meu bisavô, meu avô e meu pai… E eu. No mundo não havia nada além disso, e eu era muito feliz assim! 
- Bem, isso não parece muito estimulante… 
- Mas é, e muito. Aos sete anos de idade, já permitem que você se afaste do acampamento e descubra o mundo sozinho, e para isso lhe ensinam coisas importantes: a cheirar o ar, a escutar e ouvir, a aguçar a visão, a se orientar pelo sol e as estrelas… E a se deixar conduzir pelo camelo; se você se perde, ele lhe conduzirá onde existe água. 
- Esse é um conhecimento muito valioso, não há dúvida… 
- Lá tudo é simples e profundo. Existem poucas coisas no deserto, e cada uma delas possui grande valor. 
- Assim sendo, este mundo e aquele são bem diferentes, não é mesmo? 
- Lá, cada pequena coisa proporciona felicidade. Cada roçar é valioso. Sentimos uma enorme alegria pelo simples fato de nos tocarmos, de estarmos juntos! Lá ninguém sonha com chegar a ser, porque cada um já é. 
- O que mais o chocou ao chegar pela primeira vez na Europa? 
- Ver a gente correr nos aeroportos. No deserto, só corremos quando uma tempestade de areia se aproxima. Fiquei assustado, é claro… 
- Corriam para buscar suas bagagens… 
- Sim, devia ser isso. Também vi cartazes mostrando moças nuas: por que essa falta de respeito para com a mulher?, Perguntei-me… Depois, no Hotel Íbis, vi uma torneira pela primeira vez em minha vida: vi a água correr… e tive vontade de chorar. 
- Que abundancia, que desperdício, não é mesmo? 
- Até então, todos os dias da minha vida tinham sido dedicados à procura d’água. Até hoje, quando vejo as fontes e chafarizes decorativos que existem aqui, sinto uma dor imensa dentro de mim. 
- E por que? 
- No começo dos anos 90 houve uma grande seca, os animais morreram, nós adoecemos… Eu tinha uns doze anos, e minha mãe morreu… Ela era tudo para mim. Contava-me histórias e ensinou-me a contá-las bem. Ensinou-me a ser eu mesmo. 
- Que aconteceu com sua família? 
- Convenci meu pai a deixar-me frequentar a escola. Todos os dias eu caminhava quinze quilômetros para chegar até ela. Até que um professor arrumou uma cama para eu dormir, e uma senhora me dava comida quando eu passava em frente à sua casa. Entendi: era minha mãe que me ajudava… 
- De onde veio essa paixão pelos estudos? 
- Dois anos antes, o rally Paris-Dakar passou pelo nosso acampamento, e caiu um livro da mochila de uma jornalista. Eu o apanhei e devolvi a ela. Mas ela me deu o livro de presente e disse que ele se chamava “O Pequeno Príncipe”. Naquele instante prometi a mim mesmo que um dia seria capaz de lê-lo… 
- E você conseguiu… 
- Sim. Foi assim que consegui uma bolsa para estudar na França… 
- Um tuareg na universidade! 
- Do que mais tenho saudade é do leite de camela. E do fogo de madeira. E de caminhar descalço sobre a areia tépida. E das estrelas: lá, nós as admiramos todas as noites, e cada estrela é diversa da outra, como cada cabra é diversa da outra. Aqui, à noite, vocês ficam vendo televisão. 
- Sim. Na sua opinião, qual é a pior coisa que existe aqui? 
- A insatisfação. Vocês têm tudo, mas nada lhes é suficiente. Vivem se queixando. Na França, passam a vida queixando-se. Vocês se acorrentam por toda a vida a um banco por causa de um empréstimo, e existe essa ânsia de possuir, essa correria, essa pressa. No deserto não existem engarrafamentos, sabe por que? Porque lá ninguém quer passar à frente de ninguém! 
- Relate um momento de felicidade intensa que você viveu no seu distante deserto. 
- Esse momento ali se repete a cada dia, duas horas antes do pôr-do-sol: o calor diminui, o frio da noite ainda não chegou, homens e animais retornam lentamente ao acampamento e seus perfis aparecem como recortes contra o céu que se tinge de rosa, azul, vermelho, amarelo, verde… 


- É fascinante. E então… 
- Esse é um momento mágico… Entramos todos na tenda e fervemos a água para o chá. Sentados, em silêncio, escutamos o barulho da água que ferve… A calma toma conta de nós… As batidas do coração entram no mesmo compasso dos gluglus da fervura… 
- Que paz… 
- Aqui vocês têm o relógio; lá, temos o tempo."
 
Texto obtido daqui